“Quem sabe
o super-homem venha nos restituir a glória
mudando como um deus o curso da história
por causa da mulher”
“Super-homem, a canção”
de Gilberto Gil
Olimpo.
Afrodite.
Mulher, do barro de que você foi gerada, me vem a inspiração para decantar você em uma crônica/canção, como diz o parceiro Erasmo.
A filha de Zeus não possui poderes extraordinários.
No monte de um monte de deuses alfa, Afrodite é o outro lado da moeda.
Arquétipo do amor, esbanja beleza, personifica a fertilidade e com isso, a continuidade da espécie. Se estamos aqui escrevendo ou lendo, pensando ou defendendo, inventando ou batendo, devemos ao charme da deusa. Empoderamento feminino nas discussões à mesa e na prática? Nem pensar. Pelo menos na versão machista de romanos e gregos da época e até hoje.
Por vários motivos, mas o principal: falta de respeito.
Em pleno século XXI, as notícias diárias em destaque nas mídias são as manchetes de violência física, psicológica, moral, econômica, social, doméstica e sexual contra a mulher. Por sorte, tive um pai respeitoso que me traduziu em palavras e ações o conviver com as pessoas, principalmente com as mulheres.
O ser supremo das mitologias e governador do universo é homem. Isso explica a triste situação atual na disparidade sobre a face da Terra. Além disso, o currículo de Zeus não é flor que se cheire. A testosterona divina provocou o terrível destino do pai, Cronos, em terrível luta para resgatar os irmãos da morte. Faltou diálogo entre os machos da família. Alguma familiaridade com a notícia desse final de semana em algum canto do país?
Na escola onde a vida foi ensinada, Zeus jamais tirou um dez.
Mas eu, reles macho mortal assumido, me jogo aos teus pés, seduzido, abduzido, deslumbrado, apaixonadamente como Peri. Como ser desequilibrado que sou. Já explico. O tal Zeus, com o poder extraordinário de gerar cada pessoa no planeta, dava um gole do jarro bom e outro do ruim para cada nova criatura. Equilíbrio de forças e intenções. Mas, a preguiça também era divina e, de vez em quando, o todo poderoso só concedia gole de um dos jarros. Por isso, a existência de pessoas boas e outras nem tanto. E tantas desequilibradas. Depois dizem que os deuses não falham.
Na peça Supremos Decaídos do escritor, dramaturgo (e amigo) J. C. Sibila, no interessante diálogo de um Papa com Zeus, o pontífice realça a característica do deus olímpico em relação à sedução e ao desprezo.
Seduziu quem quis e desprezou quem não quis.
O Papa renascentista, na conversa posterior sobre Afrodite, destaca que o mundo poderia ser mais humanizado se fosse mais feminino. Simples assim.
Enquanto Zeus mata, Afrodite ama.
Por isso que a defesa jurídica do livre arbítrio pela arma (com o poder de matar) não segue o atalho da vida. Tenham livre arbítrio pelo amar. Troquem o R de lugar. Ódio, rancor, vingança não geram harmonia. Não cultuam a vida.
A melancolia de certos zeus camuflados no controle de 99% das instituições, empresas e famílias gera a falta do sexto sentido das informações soltas no universo. Na dispersão da escola de samba pode se perder o brilho e a fantasia do desfile. Os homens, em vez de prestarem atenção no que não está escrito nos estatutos, correm para as trincheiras movidos pelo ímpeto e sangue nos olhos. Fabricam blindados. Criam as guerras. Disputam cargos sem ética ou escrúpulos. Poder pelo poder. De novo, o desrespeito.
O cisgênero masculino (homem que se identifica com o sexo biológico nascido) é um ser iludido. Vive a ilusão de que ser homem basta e o mundo masculino dá tudo o que quer, o que precisamos, como diz a letra da música de Gil. Esquece que a porção mulher que todo homem carrega é a porção melhor que trazemos nas veias.
O que nos faz viver.
E por que a escondemos?
A armadura descabida é mais importante para a sobrevivência, diriam os defensores do “que vença o mais forte”. Vale a pena lembrar que o Coliseu fica em Roma e está em ruínas, caros gladiadores.
No filme Dogma, de Kevin Smith (1999), o mundo corre o perigo de desaparecer. Dois anjos expulsos do céu vêm à Terra e tentam provar que Deus é falível. Mas, como o personagem divino é uma mulher (interpretada pela cantora Alanis Morissette), o enredo não segue o caminho dos anjos caídos. Como o filme é ficção e o mundo que vivemos é real, fica mais palpável afirmar que o deus-gênero-masculino é crível. Oh, Senhor, meu Deus!
Em Florença, na Itália, uma das obras significativas do renascimento exposta na Galleria degli Uffizi é a tela O Nascimento de Vênus, de Botticelli. A maravilhosa pintura traz Vênus (a deusa Afrodite para os romanos) em gesto pudico e casto (censura total), assoprada por deuses do vento e aguardada pela Deusa da Primavera com um manto florido para protegê-la. De cabelos esvoaçantes, a deusa está em pé sobre uma concha, símbolo do batismo e da fertilidade. Origem e futuro. O poder da mulher nas artes retratadas se faz presente e admirada. Mas como artista criadora, as mulheres sempre foram e continuam sendo podadas. É hora de destacar uma pintora, escultora ou musicista genial na história.
Não existiram?
Quando visitamos Salzburg na Áustria, prestamos homenagem à Maria Anna, irmã de Amadeus Wolfgang Mozart, mais talentosa que o genial irmão caçula segundo relatos da época. Visitamos o túmulo da musicista em silêncio. Quem mandou nascer à sombra das cortes do século XVIII? Precisou parar a carreira musical para costurar em casa e procurar marido. As plantas precisam da luz do sol para respirar e serem vistas.
Quem dera pudéssemos compreender a Afrodite que carregamos no verão e no apogeu da primavera. Não fujamos das estações. Da necessidade de um mundo melhor.
Eu, como marido e pai de duas moças, faço parte da rotina das emponderadas lá de casa. Sei que a força está com elas. Argumentam, lutam pelos interesses próprios, de toda a família e das pessoas à nossa volta. Com sapiência e resiliência. Não carregam desaforo. Jamais fingem ser submissas. E com todos esses poderes femininos, mesmo em universos paralelos de ideias, me enfeitiçam.
Mulher, és espuma dos oceanos, flor do renascimento, romã de oásis, pérola das profundezas dos mares, joia escondida em cavernas desconhecidas, tudo isso e muito mais. Doce enigma a ser desvendado. Saboreado em um mundo partilhado.
Quem sabe o super-homem venha nos restituir a glória e mude o curso dessa história.
Quem sabe um dia, a manchete “amanhã será celebrado o último dia internacional da mulher” esteja estampado nos jornais e sites de todo o planeta e se torne possível.
A vida nova vem de Afrodite.
Não do suor guerreiro de deuses ilusórios.
Amemos como a deusa.
Paulo Mauá, nascido em 1961, natural de Santos, SP, é escritor, músico, engenheiro, mestre em comunicação acessível e educador. Adora ler, caminhar na praia, viajar, ouvir música, ir ao cinema, tocar, estar em família e escrever. Iniciou a carreira de escritor na Bienal do Livro de São Paulo em 2002. Autor de vários livros infantis e juvenis como A SAGA PANAPANÁ (“box” de 5 livros), DICIONÁRIO DE COLETIVOS, DICIONÁRIO DE AUMENTATIVO E DIMINUTIVO, A CASINHA DAS VOGAIS, PASSEIO INDÍGENA POR SÃO PAULO, A ROSA COR-DE-BOTO (contra a violência infantil), O MITO DE UAÇÁ E UANÁ (lançamento 1º semestre de 2025), OVELHAS E CARNEIROS – bullying entre meninas e meninos (lançamento 1º sem 2025), do livro sobre inclusão musical “O Ensino de Música para Cegos sem Braile: desafio ou loucura?” (tese de mestrado) e do romance de suspense SIRIS, PUÇÁ E PÃO DE CARÁ (volume I da Trilogia sobre a Baixada Santista), lançado em formato e-book pela Amazon durante a Bienal de SP 2024. Cronista da Revista Voo Livre com “CRÔNICAS MUSICAIS E OUTROS TRENS” desde 2022, premiado em vários concursos de poesia, contos e crônicas, realiza Oficinas de Escrita e Contato com Autor em escolas públicas e particulares da Baixada Santista, no Brasil e Europa. Trabalha com Mentoria de Escrita para pessoas que desejam publicar o seu primeiro livro e escritores em geral. Ocupa o cargo de Vice-Presidente da UBE – União Brasileira de Escritores, na atual gestão.
Sensação
Vento
Umidade